Somos
seres livres? Eis uma das perguntas mais antigas e mais estudadas pela
filosofia em milênios. O conceito de liberdade para o senso comum sempre é
associado à ideia de ir e vir de todos os cidadãos e o seu
antônimo mais claro se encontra no cárcere. Mas será mesmo que somos livres
apenas em relação ao direito de ir e vir como garante nossa Constituição? Bem,
após assistir a série “Rectify” confesso que essa lógica foi totalmente desfeita.
Talvez o conceito que mais se encaixe na lógica da
Liberdade mostrada na série seja a da filósofa e líder política Rosa Luxemburgo.
“A Liberdade é quase
sempre, exclusivamente a liberdade de quem pensa diferente de nós.”. Vou
explicar mais adiante.
A série tem como tema base a libertação de Daniel
Holden, acusado de estuprar e assassinar sua namorada e que permaneceu dezenove anos detido
no corredor da morte no estado da Geórgia. Após um exame de DNA
feito no sêmen encontrado na garota, descobriu-se que o material não era de Daniel e
devido à falta de provas mais contundentes, ele é posto em liberdade e volta para casa.
Apesar
de não apresentar um roteiro inovador, a série merece destaque pela forma como
aborda o tema, além do extremo domínio da linguagem do audiovisual. Em seus seis
episódios, conseguimos estudar claramente o perfil de Daniel sem a necessidade da série utilizar diálogos expositivos.Conseguimos capturar visualmente o espaço em
que ele está inserido (uma cidade pequena, conservadora e dominada por religiões
protestantes) ao mesmo tempo em que consegue desenvolver os personagens secundários
(com destaque para a irmã de Daniel, Amantha), além de suas motivações e crises
existenciais. Aliás, diálogos não são a base da série que prefere se concentrar
no uso das técnicas de imagem,como fotografia,montagem e direção de arte para
contar a história,uma ideia que acaba sendo muito bem executada e que cria uma gama de interpretações para o telespectador.
Voltando
ao conceito de liberdade, é de uma maneira bem orgânica que visualmente o território onde Daniel se encontra preso é
construído. E quando eu digo preso não é necessariamente o espaço físico do
corredor da morte, onde ele parece se encontrar mais “livre” do que no mundo
exterior.Esse é o conceito chave da trama. No quarto episódio da série por exemplo,“Caverna de Platão”, Daniel vai com sua mãe até um Hipermercado
fazer compras e praticamente sem o uso de diálogos e utilizando de tomadas de câmeras abertas e
panorâmicas, a série mostra o deslumbramento de Daniel com a tecnologia das TVs
Full HDs, da lógica de produção e de organização do espaço e da mudança
socioeconômica do mundo nestes últimos 19 anos em uma clara alusão aos escravos
da Caverna de Platão que passam a ver o “mundo real” após se libertarem das “sombras”
do lugar. E isso é mostrado através da belíssima fotografia com cores fortes e contrastantes
do Hipermercado. Para Daniel, o simples uso de uma celular, ou a simples leitura de um código de barras de uma
mercadoria pode parecer um desafio.
Através
de Flashbacks, a série mostra a relação de Daniel com os colegas de prisão, em
especial com um jovem negro que se encontra na cela ao lado e através disso, começa
a desenvolver o tema central da série; Daniel é ou não culpado pelo estupro e
assassinato de sua namorada? Ao mostrar a prisão com uma paleta de cor
extremamente branca, temos claramente expresso o antagonismo de um corredor da
morte a assassinos e sangue, ao mesmo tempo, humaniza aqueles
detentos que lá estão. É extremamente bem utilizada a montagem, por exemplo ao
cortar de uma cena de Daniel na prisão para uma em que o mesmo se encontra
trancado em seu quarto sem querer sair. A lógica é de que mesmo livre, Daniel
se encontra preso, ou melhor, quer continuar preso em um espaço aberto. Por que será? Por que se
sente culpado? Ou é porque não se acostumou com a ideia de estar em um espaço maior?
A
recepção da cidade a chegada de Daniel é expressa de forma contundente sem se
entregar aos clichês habituais. Desde seus familiares que não sabem lidar com
uma pessoa que ficou 19 anos ausente de seu convívio, até a opinião pública que
parece não acreditar que um criminoso esteja circulando pela cidade, temos
exemplos bem construídos de que nossa sociedade falhou quanto ao processo de “vigiar
e punir” e ao de inserção de ex detentos na mesma. Tudo para Daniel é novo. Desde
a saudade de deitar sobre a grama de um parque, até voltar a ouvir música de
seu “walkman” esquecido no sótão de sua casa. A ideia que temos é de uma analogia a
uma criança recém-nascida observando ao mesmo tempo com espanto e
deslumbramento, o mundo novo que se mostra para ela e como que o conceito de
espaço e liberdade são dúbios. O
referencial e a comparação são
fundamentais para revertermos nossos pontos de vista em relação a liberdade que
temos e como a liberdade é vista pelo outro. Contando com um encerramento de
temporada impactante, “Rectify” foi renovada e terá uma segunda temporada de 10
episódios em 2014.
Para terminar, cito mais uma frase de Rosa Luxemburgo que ilustra bem a série e sua abordagem. "Quem não se movimenta, não sente as correntes que o prendem"
Fica
a dica.