segunda-feira, 15 de julho de 2013

Rectify e o conceito de liberdade em xeque.


Somos seres livres? Eis uma das perguntas mais antigas e mais estudadas pela filosofia em milênios. O conceito de liberdade para o senso comum sempre é associado à  ideia de  ir e vir de todos os cidadãos e o seu antônimo mais claro se encontra no cárcere. Mas será mesmo que somos livres apenas em relação ao direito de ir e vir como  garante nossa Constituição? Bem, após assistir a série “Rectify” confesso que essa lógica foi totalmente desfeita.

Talvez o conceito que mais se encaixe na lógica da Liberdade mostrada na série seja a da filósofa e líder política Rosa Luxemburgo. “A Liberdade é quase sempre, exclusivamente a liberdade de quem pensa diferente de nós.”. Vou explicar mais adiante.
A série tem como tema base a libertação de Daniel Holden, acusado de estuprar e assassinar sua namorada e que permaneceu dezenove anos detido no corredor da morte no estado da Geórgia. Após um exame de DNA feito no sêmen encontrado na garota, descobriu-se que o material não era de Daniel e devido à falta de provas mais contundentes, ele é posto em liberdade e volta para casa.

Apesar de não apresentar um roteiro inovador, a série merece destaque pela forma como aborda o tema, além do extremo domínio da linguagem do audiovisual. Em seus seis episódios, conseguimos estudar claramente o perfil de Daniel sem a necessidade da série utilizar diálogos expositivos.Conseguimos capturar visualmente o espaço em que ele está inserido (uma cidade pequena, conservadora e dominada por religiões protestantes) ao mesmo tempo em que consegue desenvolver os personagens secundários (com destaque para a irmã de Daniel, Amantha), além de suas motivações e crises existenciais. Aliás, diálogos não são a base da série que prefere se concentrar no uso das técnicas de imagem,como fotografia,montagem e direção de arte para contar a história,uma ideia  que acaba  sendo  muito bem executada e que cria uma gama de interpretações para o telespectador.  

Voltando ao conceito de liberdade, é de uma maneira bem orgânica que visualmente  o território onde Daniel se encontra preso é construído. E quando eu digo preso não é necessariamente o espaço físico do corredor da morte, onde ele parece se encontrar mais “livre” do que no mundo exterior.Esse é o conceito chave da trama. No quarto episódio da série por exemplo,“Caverna de Platão”, Daniel vai com sua mãe até um Hipermercado fazer compras e praticamente sem o uso de diálogos e utilizando de tomadas de  câmeras abertas e panorâmicas, a série mostra o deslumbramento de Daniel com a tecnologia das TVs Full HDs, da lógica de produção e de organização do espaço e da mudança socioeconômica do mundo nestes últimos 19 anos em uma clara alusão aos escravos da Caverna de Platão que passam a ver o “mundo real” após se libertarem das “sombras” do lugar. E isso é mostrado através da belíssima fotografia com cores fortes e contrastantes do Hipermercado. Para Daniel, o simples uso de uma celular, ou a simples  leitura de um código de barras de uma mercadoria  pode parecer um desafio.

Através de Flashbacks, a série mostra a relação de Daniel com os colegas de prisão, em especial com um jovem negro que se encontra na cela ao lado e através disso, começa a desenvolver o tema central da série; Daniel é ou não culpado pelo estupro e assassinato de sua namorada? Ao mostrar a prisão com uma paleta de cor extremamente branca, temos claramente expresso o antagonismo de um corredor da morte a assassinos e sangue, ao mesmo tempo, humaniza aqueles detentos que lá estão. É extremamente bem utilizada a montagem, por exemplo ao cortar de uma cena de Daniel na prisão para uma em que o mesmo se encontra trancado em seu quarto sem querer sair. A lógica é de que mesmo livre, Daniel se encontra preso, ou melhor, quer continuar preso em um espaço aberto. Por que será? Por que se sente culpado? Ou é porque não se acostumou com a ideia de estar em um espaço maior?

A recepção da cidade a chegada de Daniel é expressa de forma contundente sem se entregar aos clichês habituais. Desde seus familiares que não sabem lidar com uma pessoa que ficou 19 anos ausente de seu convívio, até a opinião pública que parece não acreditar que um criminoso esteja circulando pela cidade, temos exemplos bem construídos de que nossa sociedade falhou quanto ao processo de “vigiar e punir” e ao de inserção de ex detentos na mesma. Tudo para Daniel é novo. Desde a saudade de deitar sobre a grama de um parque, até voltar a ouvir música de seu “walkman” esquecido no sótão de sua casa. A ideia que temos é de uma analogia a uma criança recém-nascida observando ao mesmo tempo com espanto e deslumbramento, o mundo novo que se mostra para ela e como que o conceito de espaço e liberdade são dúbios.  O referencial e a comparação  são fundamentais para revertermos nossos pontos de vista em relação a liberdade que temos e como a liberdade é vista pelo outro. Contando com um encerramento de temporada impactante, “Rectify” foi renovada e terá uma segunda temporada de 10 episódios em 2014.

Para terminar, cito mais uma frase de Rosa Luxemburgo que ilustra bem a série e sua abordagem. "Quem não se movimenta, não sente as correntes que o prendem"


Fica a dica.  

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